domingo, 9 de março de 2014

Ninfomaníaca - Parte II


Por Gabriel Fabri

Joe acredita ser uma viciada em sexo. Todavia, ela afirma, em uma sessão de terapia em grupo, que não é como as outras. Ela prefere o termo que dá nome à obra de Lars Von Trier, Ninfomaníaca. Mostra, nessa cena, orgulho de ser quem é, pela jornada que percorreu, mesmo que, até aquele momento, não tenha atingido o seu objetivo principal. Nesse Volume II, o diretor e roteirista encerra a polêmica saga de Joe, transformando seu filme em um manifesto contra a hipocrisia da sociedade.


A segunda parte continua a narração da personagem de Charlotte Gainsbourg a Seligman (Stellan Skarsgard), que persiste em seus comentários distantes e metáforas que, salvo raras exceções, nada agregam a ninguém. Após descobrir que o amor não era bem o ingrediente de que precisava, ao final do Volume I, a protagonista detalha o restante de seu relacionamento com Jerome (Shia LaBeouf) e as suas novas aventuras sexuais, até o momento em que explica como foi parar no beco próximo à casa de Seligman.

O filme segue a mesma estrutura do Volume I, sem reviravoltas ou mudanças de tom, e não inventa muito dessa vez, como nos capítulos do anterior, construídos um em torno da música de Bach, outro em preto e branco, por exemplo. Diferentemente de obras como Anticristo e Dançando no Escuro, em que a provocação do espectador vinha muito com o choque, aqui, ainda que cenas de sexo e sadomasoquismo sejam explícitas, esse não é o caso. Lars não usa o erotismo ou o sadismo para provocar o espectador. O que provoca em Ninfomaníaca é a mensagem, que não salva ninguém de sua crítica.

Esse Volume II firma a principal temática da obra, que é a hipocrisia das pessoas. Quem sugere isso é a própria Joe, ao definir qual palavra descreve mais perfeitamente o ser humano. Na primeira parte, já estava mais do que explícito a chacota à suposta superioridade do sexo masculino. Agora, a hipocrisia vai além de questões de gênero, embora a maior do filme seja cometida por um homem. O final revela o grande descompasso entre ação e discurso, que, de uma forma e de outra, permeia o núcleo central de personagens de Ninfomaníaca. Ou seja, o longa de Lars Von Trier questiona justamente o moralismo presente nos enunciados que mediam as relações humanas.

Um ponto forte da obra como um todo é a figura de Joe, personagem cheia de nuances. Em meio a sociedade machista, ela firma a sua superioridade, sem deixar de ser independente, como uma grande heroína, que enfrenta até palavras que não devem ser usadas. Mas a mulher não esconde seu sofrimento existencial, sua melancolia, sua solidão, sua falta de rumo e de alteridade e seu objetivo verdadeiro - que todos os seus buracos sejam preenchidos, ou seja, achar algo que a faça se sentir completa. Nesse percurso, ela encontra uma sociedade em que o amor é muito falado, mas só existe no âmbito do discurso. O que sobra é a falsidade das pessoas, e nem a protagonista, a cada satisfação sexual fingida, está livre dessa atitude. O sexo, a família, a religião, a amizade, o prazer, o politicamente correto e o amor - nada disso é verdadeiro.

Ninfomaníaca pode gerar muitas discussões acaloradas, é fato. Trata-se de um belo filme sobre a busca de sentido na vida, e sobre a falta deste na sociedade. O sexo é, como também podem ser consideradas as digressões de Seligman, uma mera ferramenta para os personagens encontrarem esse significado perdido, em um mundo onde todos os discursos tem algo de falacioso, inclusive a própria narração de Joe, que pode ser questionada, e deve, até devido a uma estranha troca de atores. E esse Volume II, que mantém o criativo e afiado humor da primeira parte, com destaque para uma inesperada referência a Anticristo, não deixa a desejar. Talvez o público até se identifique um pouco com a atitude do velho Seligman (na questão dos comentários, claro), pois terá muito material para refletir e teorizar sobre essa história. Entretanto, se esse personagem é uma representação do público, será que os espectadores, na verdade, não estão ouvindo a história, como sugere Joe (e Lars, ao sintetizar didaticamente a própria obra?)? Fazemos todos parte do mundo vazio e hipócrita levado às telas por Lars Von Trier.


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