sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O Som Ao Redor


Por Gabriel Fabri


Ao assistir a “O Som Ao Redor”, primeiro longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, é impossível não lembrar dos editoriais de Mino Carta, diretor da revista CartaCapital. O jornalista vira e mexe escreve sobre o que chama da manutenção da Casa Grande e da Senzala, ou seja, as continuações das estruturas de poder que vigoravam na escravidão, e, em sua visão, continuam em pé até hoje, com sua ideologia alimentada pela chamada grande imprensa. 

No longa-metragem, escolhido para representar o Brasil no Oscar 2014 e eleito um dos melhores filmes de 2012 por A.O. Scott, crítico do The New York Times, é claro o paralelo de uma rua de classe média do Recife com uma estrutura escravocata. Estão presentes as figuras do senhor de engenho, no personagem do Seu Francisco, e as relações de poder com os empregados.

O paralelo com as estruturas da escravidão são claros desde o início da obra. Em sua abertura, uma sequência de fotos em preto e branco de um Brasil rural, o olhar já é direcionado para essa questão, que fica mais clara na terceira parte da trama. Seu Francisco, logo quando é apresentado ao espectador, já evoca a figura de um coronel, com a frase “chegou na minha rua sem pedir licença”, lembrando de que é dono da maioria dos imóveis do bairro. Mas o seu negócio principal é o engenho, onde o público ainda pode ouvir os gritos agonizantes da escravidão, em uma determinada cena. O sangue da escravidão está ali, no banho da cachoeira, por apenas uns segundos, o que não deixa de ser marcante. Numa cena de amor, entre um segurança e uma empregada, o fantasma da escravidão aparece literalmente (visualmente?) como um fantasma. E a lei vale para todos, menos, é claro, para o protegido desse “coronel”, o jovem Dinho.

O filme acompanha a rotina de vários personagens, mostrando para o público um cotidiano muito próximo de sua realidade. Assistir a essa obra é quase um exercício de autocrítica, de nos fazer prestar atenção no que está ao redor, cientes de que algo não está muito certo. É o som incessante dos ambientes que lembra que algo está errado nesse cotidiano todo. Ou a paranóia com a segurança, que isola os indivíduos atrás de grades, portões de ferro, câmeras de segurança, em prédios “bem modernos”, como aquele que, na definição de uma personagem, “parece até uma fábrica”. O isolamento reflete em vários momentos, como um banho de mar na madrugada, ou uma masturbação com a máquina de lavar. 

O que pode ser visto como um diagnóstico das heranças da casa grande e da senzala, também é uma crítica aos comportamentos e idiossincrasias da classe média. Não à toa, a cena mais lembrada será a piada com a revista Veja, na reunião de condomínio, na qual a demissão de um porteiro é discutida de maneira bizarra, mas muito factível. Evocando as análises da filosofa Marilena Chauí, fica claro o retrato de uma classe média com ares de superioridade, como se fossem, sim, parte da burguesia. E não um meio termo entre a classe trabalhadora e a elite, a senzala e a casa grande.

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